A
leitura dos textos disponibilizados por Andrea, pedagoga da rede Enredando
Leituras, trouxe diversas reflexões a respeito do nosso papel enquanto
responsáveis pela difusão do livro e da leitura. Ao mesmo tempo me encorajou a
tomar atitudes que já vinham me inquietando a algum tempo. Mas vamos aos
textos. Depois compartilho estas inquietações.
Em
“Bibliotecas como fator de desenvolvimento”,
Fontelles chama atenção imediata para o quão é antiga a nossa primeira
biblioteca pública. Data do século XIX, caracterizando-se como uma das metas do
programa de emancipação do nosso país. Fiquei a refletir como tivemos tanto
avanço em relação à estrutura física, arquitetônica e como pouco avançamos em
relação à estrutura simbólica, cultural. Isto constata o quanto o conhecimento
e o domínio da leitura e escrita são utilizados como instrumentos de poder,
segregação e consequente alienação.
Num
país onde de quatro pessoas apenas uma ler, se falar de difusão do livro e da
leitura é mais que uma meta pedagógica ou política; é uma necessidade de
humanizar o ser humano; de garantir a qualidade humana de pensar, fruir e criar
em diversa nuances e dimensões. Vivemos ainda numa sociedade meritocrática,
onde não ler implica em aceitação,
pobreza, subemprego, conformismo e ostracismo. Ler implica em status, desalienação, consciência crítica, reflexão,
inclusão, e transformação. Atentemos para a carga semântica de cada uma
destas palavras em destaque, para o que elas representam de fato na vida de
cada brasileiro. Ainda que o leitor consciente não queira atingir determinado
status, tenha preferido viver com simplicidade, por ter outros ideais que se
sobreponham aos financeiros, este leitor teve o direito de escolha. Ainda que
leitura não signifique a garantia de ascensão financeira, garante o direito de
compreensão da realidade, de escolha.
Eis
uma palavra que está implícita neste contexto: escolher. O brasileiro e a
brasileira estão, estamos acostumados a viver de maneira fatalista, como se a
nossa existência fosse consequência inexorável da natureza e da sociedade.
Ainda é muito comum ouvir frases, como “Fazer o que? Foi Deus quem quis assim”;
“A sociedade não tem mais jeito”; “É culpa destes políticos corruptos”; “Vai
ser sempre assim: os fortes sempre vão vencer e os mais fracos vão ser
excluídos”; “Eu não aprendi a vida toda, não vou aprender agora”.
Estas
frases que estão no domínio do senso comum reproduzem concepções que datam a
Idade Média, quando se pensava na fatalidade da vida e nos mistérios da existência.
Mas o Renascimento trouxe o Ser Humano, o colocou no centro das atenções e
valorizou a sua estética, a sua capacidade de pensar, de criar e
consequentemente, a sua vaidade e capacidade de excluir.
Ler
sempre foi um privilégio de poucos. Só os aristocratas e sacerdotes, os
pensadores e cientistas; depois os pesquisadores e professores poderiam ler.
Aos pobres, camponeses, plebeus e plebeias não era dado esse direito. No
entanto, com o caminhar dos séculos, descobre-se que a leitura também pode ser uma
ferramenta de dominação. Então, ensina-se a ler para que todos possam ter
acesso aos livros sagrados, aos manuais e às regras; para que aceitem e
aprendam a viver de acordo com as ideias dos grupos dominantes.
Mas
o ser humano é este ser único, que transgride e refaz a sociedade. Assim,
figuras como Paulo Freire trazem a prática da democratização da leitura,
assumindo-a como um ato político que conduz os leitores de mundo à descoberta
do direito à escolha; do direito a ter direitos.
Já
se passou uma década do novo milênio e as mudanças ainda são tímidas.
Continuamos vivendo num país de iletrados. O acesso à educação de qualidade
continua sendo um privilégio de poucos. Com a campanha nacional de
democratização do livro e da leitura, centenas de escolas públicas e
particulares criaram uma biblioteca ou uma sala de leitura. No entanto, a
maioria delas permanece a maior parte do tempo fechada, exercendo a função de
depósito de livros.
Poucas
escolas, tomando como referência o contexto nacional, evidenciam uma biblioteca
que funcione de acordo com a Lei 12244[1].
Que tenha um planejamento pedagógico, uma prática de mediação e uma atuação
junto à comunidade do seu entorno. Mas convém ressaltar que estas poucas
bibliotecas, com a ajuda principalmente da comunidade e da iniciativa privada,
fazem a diferença. São relatos de experiência, registros que se sobressaem,
ganhando projeção em meio à sociedade. Haja vista as experiências citadas no
texto “Os segredos das melhores bibliotecas”[2].
Dentre elas, podemos citar o Ônibus Bibliioteca, o Jegue-livro, Biblioteca
Volante, dentre outros.
Ressalto
aqui, as iniciativas da Rede Emredando Leituras, da qual a Biblioteca de Ítalo faz
parte. Cada Biblioteca desta rede faz um trabalho primoroso de atendimento à
comunidade periférica de Salvador. O cuidado com a prática do livro e da
leitura, com cada criança, jovem e adulto que vem à biblioteca fica evidente no
desempenho de cada uma das pessoas que compõem esta rede de fios infinitos,
parafraseando Heloísa Prieto:
Todo
contato humano se dá por meio de uma leitura, em seu sentido mais amplo:
lêem-se as histórias que possuem aquela criança, as histórias que ela deseja
possuir, as histórias que tocam as da criança e se esse momento for tratado com
cuidado e carinho, nascerá toda uma nova família de histórias, uma rede
delicada cuja beleza poderá gerar fios que se entrelaçam infinitivamente.
As
mediações de leitura realizadas em cada biblioteca despontam de diferentes
lugares e pessoas, e se agregam, se entrelaçam a cada encontro da Rede. Assim,
o leitor imersivo, aquele que lê e recria a própria leitura, influenciando na
escrita do autor, e porque não dizer do mediar, transborda as suas histórias,
se espraia nas areias da ficção, e transforma a realidade. O papel da leitura é
assim, ainda que se pondere, teorize ou conjecture, imensurável, porque é
subjetivo, único e transcende espaço e tempo.
A
razão da biblioteca na vida de uma comunidade se confunde assim, com a razão do
livro na vida de uma pessoa. E a mediadora, o mediador são como pontes, como
meios por onde cada pessoa transita para atingir o seu alimento e saciar a sua
fome da palavra. Precisamos de ter mais fome!!!
O
ser humano é o único animal que cria. E a linguagem é a força projetiva, o
cerne e o veículo dessa criação. É por meio da palavra, seja ela escrita, contada
ou cantada, que o pensamento se propaga, se refaz, cria forma, imagem, cor e
sentimento. É ouvindo as histórias que a criança e adolescente se conectam com
o seu universo de possibilidades, e estreitam laços, sentem-se acolhidos e
amados.
Além
desta capacidade de recriar-se e recriar o meio, a partir do contato com a
leitura, há a fruição. A esse respeito, Delmanto[3]
questiona:
Chamamos prazer ao ato de ler sem nenhuma imposição?
Prazer é algo que causa dor ou aborrecimento? É sinônimo de preenchimento do
tempo livre? É algo desvinculado da necessidade, do esforço? Trabalho e prazer
se opõem de maneira excludente?
Estes
questionamentos nos conduzem a uma reflexão mais cuidadosa sobre a questão da
fruição e sobre a leitura como o trabalho, um labor, um exercício constante. A tendência
que temos a dicotomizar tudo que há, nos conduz também a dicotomizar a leitura
e suas finalidades. Ler por prazer ou ler para aprender; ler para passar o
tempo ou para trabalhar. Desta forma tendemos a simplificar demais as
possibilidades de leitura, suas causas e efeitos.
Verificamos
que quanto mais mergulhamos neste universo, mais possibilidades tempos de conseguir
solucionar questões internas e externas através da leitura. Estas
possibilidades conduzem ao estado de fruição,seja qual for a finalidade
primeira da leitura, seja qual for o seu objeto.
Dessa
forma, a leitura permite dialogar com o autor, com o contexto, consigo mesmo,
de maneira que as diversas sensações e sentimentos brotem, à medida que
palavras e imagens desfilam na retina ou nos dedos de cada um.
É
preciso, portanto, criar condições para que as pessoas leiam, desejem ler e
tenham a garantia de que o seu direito á leitura será respeitado; de que cada
um não será prejulgado por escolher ler ou não ler, de que cada um em bem maior
que um livro e cada livro pode ser bem maior do que muitas imagens.
Dispõe sobre a universalização das
bibliotecas nas instituições de ensino do País. Disponível em:
http://www.cfb.org.br/UserFiles/File/Legislacao/Lei%2012244.pdf
[2][2]
Disponível em:
http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/melhores-bibliotecas-485917.shtml
Consulta realizada em 26/04/2011
[3] A
mediação da leitura à luz da concepção de aprendizado socialmente elaborado
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